Bê-á-bá da tecnologia

Uma das principais lições que você aprende quando começa a estudar, com afinco, tecnologias é que muitas respostas para problemas atuais podem estar no passado.

Para entender, por exemplo, por que a questão da privacidade é tão frágil na internet, é necessário voltar ao passado da plataforma e relembrar que ela foi criada, acima de tudo, para ser uma tecnologia militar e governamental. É uma plataforma que foi desenvolvida com a característica de que cada passo e movimento fossem rastreáveis e ficassem registrados em algum lugar. Isso pode ser positivo ou negativo dependendo do seu ponto de vista.

Para compreender as plataformas de redes sociais, por sua vez, você não precisa correr atrás da bibliografia completa do último guru que surgiu na área. Mas, acima de tudo, observar “ferramentas de comunicação” anteriores e que também trabalhavam em rede, como o próprio telefone. Se a gente parar para observar, muito do que aconteceu com as redes de telefonia está se repetindo com as redes sociais. Não é à toa que uma vem substituindo a outra em muitos momentos do dia a dia.

Por isso é sempre importante ter uma perspectiva histórica a respeito das tecnologias. Neste sentido, um livro lançado no Brasil tenta trazer à tona essa perspectiva – História das Invenções, do historiador Trevor I. Williams (320 páginas/editora Gutenberg), em que o autor, então colaborador da revista Endeavour, conta a história de diversas tecnologias – desde o machado à tecnologia HD, atualmente utilizada em TVs.

A primeira coisa que fica evidente com a leitura é que, a longo prazo, os efeitos de uma tecnologia sempre são subestimados e os a curto prazo, superestimados.

Um exemplo é a eletricidade. A curto prazo os principais visionários acreditavam que ela seria capaz de aumentar a produtividade das fábricas, no entanto, a longo prazo, ninguém imaginou que ela mudaria o comportamento e as expectativas sociais sobre as roupas. A eletricidade fez surgir o ferro de roupa elétrico, que, por sua vez, modificou as expectativas sobre as roupas. Antes do ferro elétrico, rugas e amassados eram considerados normais nas roupas na medida em que era bem trabalhoso passar roupa em casa, os ferros eram à carvão. Depois, rugas em roupas viraram sinônimo de desleixo. Algo que perdura até hoje.

Ou ainda. Poucos conseguiram imaginar que a longo prazo as máquinas de escrever abririam as portas do mercado de trabalho para as mulheres, o que teve um grande impacto social.

Portanto, apesar de os gurus tentarem dimensionar os efeitos futuros, não é possível saber, com detalhes, os efeitos sociais de uma tecnologia a longo prazo.

Será que não estamos vendo o mesmo com a web nos últimos 15 anos? Superestimamos os seus efeitos a curto prazo e os subestimamos a longo prazo?

Trevor nos lembra que lá nos primórdios da civilização as invenções tecnológicas eram anôminas. Ninguém sabia exatamente quem inventou o machado, por exemplo. Porém, com o passar dos tempos e o desenvolvimento de sistemas de manutenção e recuperação de informações, as invenções deixaram de ser anônimas e passaram a ser atribuídas a indivíduos específicos. Alexander Graham Bell inventou o telefone. Tim Berners-Lee, a web.

Com o aumento do uso de ferramentas online de colaboração, Trevor acredita que poderemos voltar ao passado. Apesar de a criatividade individual ainda ser a mola mestra das grandes invenções da humanidade (conforme Jaron Lanier nos mostra em Você não é um aplicativo), o historiador acredita que as próximas invenções tecnológicas surgirão cada vez mais de equipes não identificadas publicamente, dentro de corporações públicas ou privadas.

A História das Invenções deixa evidente outra coisa – toda tecnologia necessita de uma “publicidade social” para ser conhecida e plenamente aceita pela sociedade. Um exemplo é o telégrafo. Somente quando, em 1845, um assassino foi preso graças à comunicação rápida proporcionada pelo telégrafo é que ele conseguiu atrair a atenção pública, principalmente da massa. Antes o telégrafo era desconhecido e visto apenas como uma tecnologia militar.

Ou seja, somente a partir do momento em que o telégrafo tentou resolver um problema imediato do dia a dia é que ele passou a ser reconhecido. Será que não estamos assistindo ao mesmo na área de serviços de internet. Twitter e afins não precisam de um “efeito social” para serem vistos como útil pelo grande público? Uma coisa é os geeks acharem genial. Outra coisa é o grande público.

História das Invenções é um livro bem ilustrado, com infográficos e imagens detalhando cada tecnologia. Segue a edição de obras escolares de história. Os capítulos são divididos de forma cronológica, do Velho Mundo ao Mundo Moderno. Os subcapítulos são curtos.

Na verdade, História da Invenções é uma reedição de uma edição revisada em 2.000, lançada após o falecimento do autor em 1996.

A edição brasileira peca por não ter um glossário, uma vez que o autor emprega uma terminologia muito técnica em diversos momentos, e até certo ponto pode ser tediante.

Neste sentido, gosto bem mais do estilo do historiador David Bodanis. Em seu livro Universo Elétrico, ele conta a história da eletricidade e suas tecnologias adjacentes (gps, telefone, lâmpada) de forma “romanceada”, com detalhes que fogem de tradicionais livros. A leitura é bem mais atraente (o telefone foi criado por que Graham Bell, antes de tudo, queria se comunicar melhor com a sua namorada, que tinha um problema de audição).

História da Invenções, portanto, é bom para ser utilizado como livro de consulta – para checar datas e alguns detalhes históricos quando necessário.

O livro pode causar um pouco de estranhamento no momento atual em que tecnologia é apenas associada a eletrônicos e computadores.

Garfos, facas, roupas e medicamentos também são tecnologias. Tecnologia é um ingrediente essencial da civilização. Onde existir civilização, existirá tecnologia. Contudo, engana-se quem acha que as necessidades humanas são a única fonte motivadora para a criação delas.

Tecnologias são, antes, produtos da criatividade humana. Como Trevor nos mostra, estudar a história das tecnologias é, acima de tudo, refletir sobre a história da criatividade humana individual e coletiva.

Um capítulo do livro está disponível para download (em formato pdf).

Veja também: Pixar é a Disney de quem já nasceu digital

Créditos da fotos: Paleo Future (1 e 3) e Jazza2 (2)

8 respostas para “Bê-á-bá da tecnologia”.

  1. Muito bom o texto…Parabéns!

    Curtir

  2. Eu vou citar Clay Shirky pela centésima vez, mas é que a frase dele é lapidar: Tecnologia se torna socialmente interessante quando se torna tecnologicamente enfadonha.

    Curtir

    1. Muito bom

      Curtir

  3. […] tomo emprestada uma frase do Tiago Doria pinçada daqui: “muitas respostas para problemas atuais podem estar no […]

    Curtir

  4. […] Por isso, talvez o seu formato seja um dos primeiros exemplos do que é comentado pelo historiador Trevor Willliams. Com o surgimento da web, as grandes invenções deixariam de ser atribuídas a um indivíduo e […]

    Curtir

  5. […] cenário ratifica algo bem comum na história da tecnologia – o quanto dispositivos generalistas são poderosos. São produtos que atendem diversas demandas […]

    Curtir

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados *