“O mundo é repleto de lugares miseráveis. Uma forma de viver confortavelmente é não pensar neles, ou, quando isso acontecer, enviar dinheiro”. Em 2003, o escritor americano Tracy Kidder utilizou essas palavras para fazer um contraponto ao que representava o projeto inovador de assistência média do antropologista e físico Paul Farmer.
Farmer não sabia, mas, na época em que criou o projeto, nos anos 80, estava sedimentando um dos primeiros exemplos de inovação reversa – teoria que, 20 anos depois, iria mudar a forma como diversas empresas de tecnologias inovam.
Em 1987, o físico americano cofundou a Partners In Health (PIH), organização de assistência médica com atuação no Haiti, país afetado por doenças como AIDS e tuberculose. A PIH tinha como diretrizes a medicina preventiva (não tratar a pessoa somente quando ficava doente) e a meta de que as doenças não fossem tratadas isoladamente (diferente dos tradicionais sistemas de saúde no Ocidente). Para tratar um paciente, não bastaria conhecer apenas a sua doença, mas também a sua vida – onde mora, familiares, amigos e renda.
O método inovador deu tão certo no Haiti, que, anos depois, ele foi exportado para Boston, nos EUA, alcançando resultados significativos – para o governo, o custo de um paciente caiu de US$ 22,443 para US$ 12,926.
Ou seja, o PIH foi uma inovação que seguiu um caminho diferente do que estamos acostumados – ela nasceu primeiro em um país pobre, voltada às necessidades locais, e depois foi exportada para os países ricos, alcançando o sucesso global.
O caso da PIH está relatado no livro Reverse Innovation: Create Far From Home, Win Everywhere (No Brasil, lançado pela Editora Campus/Elsevier), de Christopher Trimble, consultor empresarial, e Vijay Govindarajan (foto acima), professor da Tuck School of Business e criador do termo “reverse innovation”, inovação que nasce nos países emergentes e depois é exportada para os desenvolvidos.
A bebida Gatorade é um exemplo clássico dessa dinâmica. A bebida foi criada na Índia para o tratamento de pessoas com desidratação. Depois, foi levada para os países desenvolvidos, virou “bebida de atleta”.
Govindarajan, um dos principais nomes da área de gestão e inovação, estuda o fenômeno desde 2005. No entanto, devido à crise de 2008, que fez com que mercados emergentes acabassem ganhando maior destaque, houve um boom de interesse em torno do tema.
Com a crise, as empresas americanas e européias passaram a se focar ainda mais em mercados de outros países, principalmente nos emergentes que têm perspectivas de crescimento maiores que as dos países desenvolvidos. Hoje – Brasil, China, Índia e Rússia – já respondem por quase metade do PIB mundial.
Tudo isso fez crescer a necessidade de se entender como funcionam os mercados emergentes. Compreender esses mercados, segundo Govindarajan, passa por abandonar a tradicional mentalidade de glocalization – pegar um produto que foi produzido e vencedor nos mercados desenvolvidos e adaptá-lo ao mercado emergente, removendo recursos considerados caros.
A atitude de glocalization é colocada em xeque, pois não seria mais competitiva. Quando é bem sucedida, atinge somente as pessoas das classes mais altas dos emergentes, enquanto que, nestes países, as baixas e médias são as mais numerosas.
Segundo o professor, ao não mudar esse modelo, as empresas acabaram por abrir espaço para o crescimento de empresas concorrentes nascidas nos emergentes. Exemplos não faltam.
Pesquisa recente mostra que, na China, aparelhos de celular produzidos por empresas locais e mais próximas das necessidades reais do consumidor chinês já ocupam 60% do mercado, ultrapassando tradicionais empresas como Nokia, Motorola e LG.
A Sony mesmo se enganou ao acreditar que para entrar nos países emergentes, bastaria vender produtos mais baratos e com tecnologias inferiores. Perdeu espaço para a Samsung, que hoje está conquistando o espaço da Sony não somente nos emergentes, mas também em seus mercados iniciais.
Para Govindarajan, inovação reversa não implica unicamente em repensar mercados, mas a própria forma de inovar. A maioria dos processos inovadores começa com uma tecnologia que depois tem as suas aplicações exploradas. No caso da inversa, a inovação começa com uma necessidade clara do cliente.
A Procter & Gamble (P&G) é uma das empresas que teve que mudar a política de inovação ao entrar nos emergentes. A forma como o seu laboratório de inovação no México passou a atuar, focado nas necessidades reais dos mexicanos, alterou o modo como o departamento de inovação em sua matriz até então operava.
Após diversos anos de excelência, o laboratório de pesquisa e desenvolvimento da P&G tendeu a ficar focado demais em tecnologia – tornando-se “technology-driven” em vez de “consumer-driven”.
Naturalmente, inovação reversa é uma teoria que vê a inovação com contexto e vai contra o determinismo tecnológico, linha de pensamento bem comum hoje em dia. Não é por que uma inovação ou tecnologia produziu um determinado efeito em um ambiente que necessariamente se repetirá em outros. Tudo depende do contexto.
Para quem já acompanha o trabalho de Govindarajan, o livro pode ser um pouco decepcionante. Não há muitas novidades. Reverse innovation tem como base os cases e diversos textos já publicados pelo professor em seu blog e na Harvard Business Review. Tudo de forma mais palatável e menos acadêmica.
Fica evidente que a teoria da inovação reversa, na realidade, é uma expansão do trabalho pioneiro de outro pesquisador de gestão internacional – Ray Vernon, que desenvolveu estudos a respeito dos mercados após a Segunda Guerra Mundial.
Vernon mostrou como os fluxos de inovação giravam em torno de EUA, Europa e Japão. A teoria da inovação reversa, de Govindarajan, expande essa premissa e insere um novo fluxo de inovação – dos países pobres aos ricos.
Reverse Innovation tem como ponto forte balancear teoria e prática. A primeira parte do livro é dedicada a teoria e contexto histórico, enquanto que a segunda reúne os cases e um guia prático de como adotar a “inovação reversa” em sua empresa.
Uma das dicas é básica, mas frente a qual muita gente ainda bate a cara – sempre tenha um sponsor. De nada adianta ter um projeto inovador genial se falta um bom “padrinho”. Sponsor nada mais é do que uma pessoa, de preferência na diretoria, que defenda e facilite o seu projeto internamente.
Essa figura é muito importante, pois geralmente projetos de “inovação reversa” mexem com estruturas e vícios internos de uma empresa.
Outra dica é a criação de equipes locais de crescimento – uma espécie de startup da empresa localizada nos emergentes voltada a criar produtos e inovações para o mercado local. Uma mesclagem entre inovação local e acesso a tecnologias e equipes de marketing da matriz.
Na parte de cases, um que resume bem a teoria da “inovação reversa” é o da Logitech. Em 1993, a empresa entrou no mercado chinês adotando a estratégia da glocalization – pegar um produto vencedor nos EUA e, com pequenas modificações, lançá-lo no mercado local.
Na visão da Logitech, assim que a internet e outras tecnologias se tornassem onipresentes, mais cedo ou tarde, os consumidores chineses seriam iguais aos americanos. Desse modo, no final dos anos 90, a empresa lançou um mouse sem fio no mercado chinês.
Depois de um sucesso inicial veio o fracasso. Em 2008, a Logitech perdeu rapidamente espaço para a Rapoo, empresa local que produzia um mouse mais barato e, acima de tudo, conectado às reais necessidades do mercado chinês.
O principal problema do mouse da Logitech não era o preço, mas a performance. A Logitech pensava que o seu concorrente era a Microsoft, que estava lá nos EUA, e não a Rapoo, que se encontrava bem ali do seu lado, na China. Além disso, a empresa não levou em conta as caraterísticas do usuário chinês. Mouse sem fio na China tem que ter um bom sensor de transmissão de dados entre o periférico e o computador (as casas são pequenas, é muito fácil o mouse sofrer interferência de outros aparelhos); ademais, os chineses gostam de plugar o notebook na TV e, sentado no sofá, assistir a vídeos baixados da internet. Ou seja, na China, mouse é controle remoto.
O mouse da Logitech era o contrário de tudo isso – voltado ao mercado americano, onde as residências são grandes e as pessoas, por terem acesso a serviços robustos de TV a cabo, dificilmente vão utilizar um mouse como controle remoto da TV.
Para não perder mais mercado para a Rapoo, em 2009, a Logitech foi obrigada a reavaliar totalmente sua estratégia. Adotou a metodologia da “inovação reversa” e do zero criou um mouse para o mercado chinês. Hoje a empresa já bateu a Rapoo e muito das tecnologias e dos conhecimentos aplicados no mouse chinês já estão em milhares de periféricos vendidos globalmente pela Logitech.
Por ser um fenômeno relativamente recente, ainda existem muitas perguntas abertas, e ainda não suficientemente respondidas, sobre “inovação reversa”. Quais tipos de inovação criadas nos emergentes tendem a migrar para os países desenvolvidos? Quais mecanismos realmente impulsionam a inovação nos países emergentes? Apenas problemas de infraestrutura?
A única certeza está na mensagem do livro, que é clara – “inovação reversa” é, acima de tudo, um movimento de conhecimento dos países emergentes para os desenvolvidos e que ratifica que talento e inovação podem ser agora universais.
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