Uma vida digital e civilizada é possível

A vida digital não anda nada fácil. Excesso de informações, notícias de fontes duvidosas compartilhadas em massa, discussões sem pé nem cabeça, debates polarizados, propaganda comercial disfarçada de opinião espontânea, histeria e necessidade constantes de ter opinião sobre tudo, aventureiros da “social media”, spam, phishing, perfis falsos. A vida em frente ao computador é cheia de distrações e armadilhas.

Para o historiador Andrew Keen, a internet é uma espécie de faroeste. Coitado de quem não conhece os seus meandros. Sherry Turkle, pesquisadora há 30 anos do MIT, é mais intensa. Acredita que, mais do que nunca, estamos “sozinhos e juntos ao mesmo tempo“. Usar a rede é como andar numa avenida de uma grande metrópole, estamos rodeados de pessoas, mas, mesmo assim, sozinhos.

Segundo Howard Rheingold, defensor e pesquisador há quase 3 décadas das “comunidades virtuais” (hoje chamadas de redes sociais), a internet ainda não cumpriu tudo o que prometeu. Contudo, ele acredita que o criticismo por si só não resolve muita coisa. É necessário pensar em soluções para mudar esse cenário.

Do mesmo modo que na mudança do campo para as cidades, o homem precisou adquirir novas habilidades, a emergência da vida digital exige que novas competências sejam adquiridas.

Em outras palavras, para aproveitar melhor a vida digital, evitando assim as suas armadilhas e distrações, as pessoas precisam aprimorar novas e antigas habilidades. Para Rheingold, essas competências se resumem a cinco – atenção, participação, colaboração, inteligência de rede e detector de bobagem.

Em Net Smart (272 páginas/Editora MIT Press), Rheingold disseca as cinco competências e decreta que ainda não nos adaptamos à internet e a vida em rede que ela proporciona.

Lançado no começo deste ano, Net Smart é o terceiro e menos acadêmico livro do pesquisador, um dos pioneiros da web. É uma leitura altamente recomendada para quem trabalha com internet, bem como educadores ou pais preocupados com a vida digital dos próprios filhos.

Para quem está há mais tempo no mundo digital, a leitura de Net Smart funciona como uma sessão de terapia, você começa a entender porque tem essa ou aquela atitude online.

No livro, Rheingold se posiciona como um romântico. Segundo ele, uma vida digital civilizada ainda é possível. Mas, para tanto, a gente precisa saber:

1) Usar a atenção
Atenção é como um músculo. Você precisa fazer exercícios, como meditação, para desenvolvê-la. Não são os outros que dominam a sua atenção, mas você que tem controle sobre ela. Para isso, você precisa dizer não e ter consciência da sua intenção. Ou seja, ter um objetivo quando se conecta à web.

Entrar na rede sem um objetivo e de forma aleatória é muito bom quando você quer descobrir algo, mas prejudicial quando quer ser produtivo.

Respire. Perceba se o que você está fazendo merece a sua atenção. Somente assim você conseguirá lidar com o overload informativo.

Para o pesquisador, a questão atual não é o quanto a “internet está nos deixando burros”, mas o quanto podemos ficar mais inteligentes e cultos com a ajuda dela.

2) Usar a colaboração
Sempre pudemos escolher em que vale a pena prestar atenção, contudo, com a internet, podemos influenciar de forma mais acentuada as pessoas a partir de nossas escolhas.

Colaborar é compartilhar o que há de interessante na rede, o que merece atenção; no entanto, com a consciência de que isso inevitavelmente tem poder de influência. Ao compartilharmos coisas relevantes, criamos links entre coisas e pessoas. Por isso, precisamos tomar cuidado com o que passamos para frente.

Dessa forma, trazemos benefícios não somente para a internet, mas também para nós mesmos – podemos desenvolver uma identidade (pessoal ou profissional) e ainda ser reconhecido.

Não é porque as pessoas são usuárias de plataformas de rede social que elas são colaborativas. Colaborar é construir juntos. Juntos somos mais que a soma das partes.

3) Usar a inteligência de rede
Entender como funciona a rede talvez seja a habilidade mais difícil. É necessário ter consciência de que a internet nos ajuda a constituir muitos, porém frágeis laços de amizade. Teremos laços mais fortes somente no encontro face a face.

Nossa sociedade deixou de se organizar em grupos para estar em rede. É por isso que temos muitos amigos online, mas mal conhecemos o nosso vizinho. Não é mais o local físico que cria a identidade das pessoas, mas as redes.

O que importa não é o número de laços, mas a sua posição na rede. Ter noção disso e de que estamos em rede e o quanto as nossas ações influenciam os outros aumenta a importância do respeito ao próximo.

4) Usar a participação
Você não entende como um ambiente tão binário como Facebook possa ser tão popular? Rheingold mostra que a participação online se divide em “interest driven” ou “friendship driven”.

Em ambientes online guiados pela amizade as pessoas já se conhecem anteriormente. A experiência geralmente é passiva e você não precisa produzir nada para participar do ambiente. Exemplo: Facebook.

Em ambientes guiados por interesses, pouco importa a relação entre as pessoas, o que as unem informalmente são o conhecimento especializado ou a paixão por algo em comum. Exemplo: redes de blogs e fóruns de discussão especializados.

Ou seja, há gente que gosta de participar da internet simplesmente porque seus amigos estão lá. Outros, porque a rede pode ser uma experiência dinâmica de descoberta de pessoas com objetivos afins.

Usuários que participam com base em interesses normalmente não gostam de ambientes como o Facebook, onde predomina a cultura de extroversão. Preferem ambientes exclusivos onde podem produzir o próprio conteúdo especializado.

Usuários que são “interest driven” têm uma participação mais ativa na internet, usuários “friendship driven” são mais passivos.

A participação na internet, em seu início, era muito baseada em interesses, conteúdo especializado e experiência ativa, por isso pessoas que estão há mais tempo no mundo digital normalmente acham a experiência de usar o Facebook fria e simplória.

Segundo Rheingold, ter consciência desses nuances na participação ajuda no posicionamento perante a web e na percepção do que esperar das outras pessoas.

5) Usar o detector de bobagem
Todo homem deveria ter um detector de bobagem dentro de si. A frase do escritor Ernest Hemingway nunca esteve tão atual. Para Rheingold, na internet você deve agir como um agente da CIA. Desconfie de tudo e de todos.

A técnica de triangulação, utilizada por jornalistas investigativos, é recomendada como tática para fugir das falsas informações que circulam na web. Cheque uma informação com três fontes diferentes e confiáveis. Paranóia? Não. Usuários mais experientes já fazem “triangulação” há bastante tempo sem perceber.

Net Smart é um dos livros mais pessoais de Rheingold (foto acima), que utiliza a própria família para ilustrar diversos casos.

Um dos trechos mais interessantes se dá justamente quando Rheingold utiliza a sua experiência de quase 30 anos em comunidades virtuais para tocar em pontos polêmicos e que você não vê em nenhum evento badalado sobre internet.

Para o pesquisador, já há muito tempo, serviços de internet que se alimentam da colaboração dos usuários deveriam ter um visível “aviso legal de consentimento”, uma advertência semelhante ao que vemos em maços de cigarros e propagandas de remédios na televisão. Algo do tipo – “ao utilizar esse site saiba que você está doando parte de seu trabalho para a gente em troca de lucro algum”.

Segundo Rheingold, em serviços de internet apoiados na participação dos usuários, a linha entre trabalho e o lúdico é muito tênue.

Resultado de uma parceria da Google com a Universidade de Carnegie Mellon, o ESP Game é citado como exemplo dessa realidade. No jogo, os usuários são convidados a descrever aleatoriamente imagens que aparecem na tela do computador. No final das contas, os dados gerados no jogo são utilizados pela Google para classificar as fotos indexadas pelo Google Images.

De mesmo modo, Rheingold acaba contribuindo para o coro dos que acreditam que, atualmente, o Facebook é uma espécie de Internet Explorer, algo que milhares de pessoas usam, mas que faz um mal para o desenvolvimento da web.

A esta altura do campeonato, criticar a plataforma de rede social é meio como chutar gato morto, mas, mesmo assim, o ponto de vista é pertinente.

Rheingold mostra que, ao lançar o botão de “curtir”, o Facebook reconheceu a importância da curadoria. O ato de criar um perfil é um exercício de desenvolvimento de identidade. No entanto, a plataforma de rede social deseduca. Diferente da ação de navegar aleatoriamente pela internet e do Twitter em que você desenvolve a sua própria habilidade de filtrar informações, no Facebook tudo vem pronto e mastigado. Um algoritmo define o que é relevante.

O escritor se impressiona como as pessoas jogam a responsabilidade de definir o que é relevante em suas vidas para uma tecnologia que nem sabem direito como funciona. O algoritmo do Facebook é uma caixa preta.

Por isso, para Rheingold, uma máxima faz bastante sentido hoje em dia – se você não sabe o que está fazendo no Facebook, acaba virando vítima dele.

A propósito, essa é a tônica que domina todo o livro do pesquisador e justifica a importância de desenvolver as cinco habilidades de “inteligência de rede”. Se você não controla a sua vida digital, os outros a controlarão para você. É necessário desenvolver um senso crítico para aproveitar a vida digital.

Esse pensamento é bem resumido na frase do professor americano de antropologia Michael Wesch, citado com destaque em Net Smart. “Eu utilizo mídias sociais na sala de aula não porque os meus alunos as usam, mas porque eu tenho medo que as mídias sociais os usem sem eles perceberem”.

Veja também: Onde é mais conveniente ler livros digitais?

Crédito das fotos: Jadendave, Jorge Franganillo, Dea Pea Jay, Hcky So, divulgação (2, 8,9)

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