“Eu não tenho carro!”. Quem diria, essa é a frase mais comum de se ouvir aqui em Boston, nos EUA. Cada vez menos os americanos estão dirigindo. E a mudança não é causada pela recente crise de 2008, mas sim pelo declínio da cultura do carro acompanhado do aumento da cultura digital, que tem como anexos conceitos de “economia compartilhada” e de um estilo de vida mais minimalista.
Diversos estudos indicam essa crescente tendência. Segundo o Departamento Americano de Transportes, pessoas abaixo de 30 anos dirigem 10% menos do que as da mesma faixa etária uma década atrás. Hoje, aproximadamente 70% dos jovens têm carteira de motorista. Em 1978, 92% tinham o documento. Já a Associação Americana de Transporte Público indica que, de forma crescente, os americanos nascidos após 1982 estão preferindo outras formas de transporte como bicicletas e carros compartilhados.
Pesquisas confirmando esse movimento pipocam não somente no setor de transportes, mas também no imobiliário. Segundo a Associação Nacional de Corretores de Imóveis, cada vez mais, as pessoas estão preferindo comprar casas numa vizinhança onde é possível andar sem a necessidade de carro do que uma moradia grande com espaço para diversos veículos na garagem. Ter uma vizinhança que dispense o uso de carro tornou-se um diferencial.
A rigor, não é preciso ler todos esses estudos para sentir essa mudança na pele. A maioria dos meus amigos aqui, em Boston, são da área acadêmica, negócios e TI. Ou seja, três áreas-chaves para a economia local. E confesso uma coisa, a maioria não tem carro nem tem planos nesse sentido. Quem é proprietário de um não tem a intenção de trocar por um novo tão cedo. E olha que alguns são casados. Às vezes, precisam andar para cima e para baixo com crianças.
Eles não estão sozinhos: é comum encontrar americanos mais novos, entre 20 e 25 anos de idade, que até hoje não tiraram a carteira de motorista. Quando realmente precisam de um carro, as pessoas acabam utilizando serviços de aluguel de carro como o Zipcar, cofundado por uma ex-aluna do MIT e bastante usado em Boston.
Eu mesmo não me vejo tão cedo comprando um carro, apesar dos preços serem bem mais acessíveis do que os praticados no Brasil.
E olha que o transporte público em Boston não é considerado um dos melhores do país. A linha metroviária é a mais antiga dos EUA e a empresa de transportes local tem enfrentado uma dívida crescente.
O que está em curso na realidade é uma mudança de cultura. Ou seja, o uso de celulares, a onipresença da internet e a chamada “economia compartilhada” vêm afetando o setor de transporte e as cidades americanas de uma forma nunca antes percebida.
Protagonistas dessa mudança já foram até rotulados como “Novos Urbanistas“, expressivo grupo demográfico que estaria mais conectado aos seus dispositivos pessoais móveis do que a carros. Seria um grupo resultante do enfraquecimento dos subúrbios americanos e que estaria a alterar a cara das cidades. Onipresença de WiFi, ruas seguras e tecnologias de sensores e geolocalização são aspectos essenciais para o dia a dia deles – família, trabalho, compras, sair com os amigos.
O setor de tecnologia é um dos primeiros a absorver essa mudança. Para se ter uma ideia, uma das principais reivindicações do setor local para o recém-eleito prefeito de Boston, o democrata Marty Walsh, é justamente o aperfeiçoamento do setor público de transporte.
Para os empreendedores locais, é impossível falar de startups, crescimento da “economia criativa” e do setor tecnológico local sem tocar no assunto de transporte público. A maioria dos funcionários desse setor é usuária de transporte. Na visão dos empreendedores locais, um sistema de transporte melhor resulta em funcionários mais felizes e satisfeitos, o que, por sua vez, deriva em criatividade e produtividade.
E isso é o interessante do setor de negócios aqui de Boston: há uma visão holística. Transporte público, incentivo a empreendendorismo, setor imobiliário: tudo tem que andar junto. Tanto que uma das discussões atuais consiste em como fornecer moradia mais barata para pessoas que venham investir em Boston. Há até um projeto de criação de um conjunto de apartamentos próximo a um dos principais centros de inovação por aqui. Moradia voltada para trabalhadores de startups e outras empresas criativas.
Mas voltando à questão específica do carro, é interessante notar que os setores de inteligência de mercado da própria indústria estão atentos a esse panorama. A Ford, por exemplo, é uma das principais investidoras da Zipcar.
A gerente global de tendências do consumidor da montadora de carros, Sheryl Connelly, admitiu recentemente ao NYTimes que os carros não são mais um símbolo de liberdade ou status como há 20 anos.
Nunca foi tão barato comprar um carro, mas também nunca foi tão caro mantê-lo – impostos, seguro, estacionamento, manutenção. A própria indústria de carros em si é cada vez mais cara e os recalls são constantes.
Esse cenário abre brecha para a chamada “economia compartilhada”, formada por serviços de compartilhamento e aluguel de carros e bicicletas. Um dos últimos chamados do MIT Media Lab, por exemplo, é para que desenvolvedores criem respostas para essa geração que deixa o automóvel em casa. Ou seja, soluções que melhorem o transporte público e o uso de serviços diferenciados de transporte como o compartilhamento de veículos.
A indústria de carros vem fazendo a sua parte, ao tentar se aproximar desses “Novos Urbanistas” e criar “carros conectados”. Mas, ao que tudo indica, a mudança é maior e mais profunda.
Quem sabe num futuro não muito distante, a indústria de carros passe a ser muito mais B2B do que B2C. Ou seja, seu negócio estará mais em vender seu produtos diretamente para empresas e locadoras.
Um detalhe nesta história é que ela ainda não é sentida com a mesma intensidade em todo o mundo. Em países como Brasil, Índia e China, o movimento é contrário. Com a emergência de uma nova classe social, há políticas e um caldo cultural para que as pessoas comprem e usem mais carros e ainda os utilizem como símbolo de status.
Por isso, seria um exagero, por ora, afirmar que os carros terão o mesmo fim que os cigarros e os refrigerantes. Ou seja, algo que, num futuro próximo, a gente não vai mais consumir com tanto volume e afinco. A única certeza é que o papel do automóvel como tecnologia já começou a ser questionado na sociedade. Porém, existe uma geração que não está esperando esse debate terminar – já está deixando o carro na garagem, ou melhor, nas concessionárias, e abraçando a “economia compartilhada”.