Raio-X da inovação no NYTimes

Vazou um relatório interno de 96 páginas a respeito de como anda a estratégia do New York Times no ambiente digital. A análise do documento é importante para qualquer pessoa que trabalha com a publicação de conteúdo na web.

Não vou entrar no burburinho que existe por trás da distribuição do relatório e na disputa de poder que anda ocorrendo internamente no NYTimes (o relatório é assinado pela equipe de A.G. Sulzberger, filho do atual publisher da publicação), mas sim nas questões fatuais do material publicado em primeira mão pelo Buzzfeed.

Em linhas gerais, o relatório afirma que a presença digital do NYTimes é deficitária e pouco promissora. O material:

1) Reflete a baixa motivação da equipe digital
É nítido um certo desgaste da equipe digital do NYTimes. Volta e meia, o pessoal da equipe digital vem até ao MIT, e percebe-se um certo cansaço entre eles: projetos cancelados, burocracia, barreiras culturais.

Aliás, já faz um tempo que o NYTimes deixou de ser o único farol de inovação na área. Fora dos EUA, a presença digital do NYTimes é ainda uma referência, mas internamente startups de jornalismo e sites, como Vox, Medium, Circa e Buzzfeed, pautam bem mais as discussões sobre inovação na área de jornalismo.

É preciso também levar em conta que muito do que o NYTimes fazia de “inovador” há 3 anos já está virando “lugar comum” no mercado americano de notícias – base de dados aberta, lógica computacional, digital melhor que o impresso.

Não é à toa que o relatório pegou de surpresa o público fora dos EUA.

2) Queda do poder da home e do desktop
O documento toca num ponto importante, porém usual para quem acompanha os meus textos: cada vez menos a home do NYTimes é visitada, e cada vez mais os leitores chegam até o site por meio de plataformas de redes sociais.

Ponto positivo pelo relatório levantar essa tendência de consumo de informação, ainda que atrasada uns 3 anos.

Outro sinal positivo é o alerta sobre a “queda do poder do desktop”.

Depois da “queda do poder da home”, estamos assistindo a uma consolidação do mobile como principal fonte de tráfego. No Financial Times, por exemplo, 60% do tráfego do site da publicação tem origem em dispositivos móveis.

Nos projetos que participo em Boston, o cenário não é diferente, o mobile é a nossa principal porta de acesso.

Perceber que o tráfego vindo da home vem caindo não é um problema. O preocupante é não dar o devido valor ao crescimento do mobile como fonte de tráfego.

3) Fuga de talentos e o problema de contratação
Esse é o ponto que considero mais importante no relatório. É a primeira vez que um documento oficial toca num dos principais problemas atuais das empresas de jornalismo: a fuga de talentos e a dificuldade de contratar pessoas talentosas na área digital.

Segundo o relatório, esse tipo de mão de obra especializada é cada vez mais disputada no mercado e o jornal não tem encontrado meios de atrair nem manter esse tipo de profissional.

Na realidade, esse não é um problema exclusivo do NYTimes. É uma adversidade do mercado como um todo. Em menor grau, startups também têm dificuldades de contratação, apesar de serem atualmente o “lugar dos sonhos de trabalho” para os profissionais mais ousados da área digital.

Participei recentemente de um workshop sobre contratação no Laboratório de Inovação de Harvard. E um dos principais pontos levantados foi: evite as indicações e as referências.

Indicações são boas ferramentas, pois minimizam o risco no processo de contratação, mas, por outro lado, criam um círculo vicioso: a tendência de contratar quem pensa igual.

Empresas apoiadas demais em círculos de referências tendem a contratar pessoas que elas conhecem e com quem trabalharam bem no passado, o que é um perigo, posto que cada situação é diferente. Talvez o que tenha funcionado no passado não funcione mais hoje. No digital, esse alerta faz bastante sentido.

Possivelmente correr mais riscos no processo de contratação e ter pessoas com uma experiência mais diversificada ajude o NYTimes a atrair pessoas mais talentosas na área digital.

4) Mostra que o jornal pode fazer mais no digital
Ainda que tenha um tom pessimista a uma primeira leitura, no geral, o relatório é positivo, demonstra por parte do NYTimes uma certa humildade, um reconhecimento dos erros e uma consciência de que a publicação pode fazer mais em sua presença digital.

O documento tem um ponto histórico importante: a constatação oficial de que o principal problema da publicação é de processos. O NYTimes como um todo ainda pensa em e respira com “impresso primeiro, digital bem depois”, apesar de ter uma equipe de 445 tecnólogos (número de dar inveja a qualquer empresa de software).

E esse reconhecimento é positivo. Sai daquele discurso simplista de que o contratempo atual das empresas de jornalismo é simplesmente de conteúdo ou de tecnologia. É o primeiro passo para a publicação questionar e inovar seus processos.

Sem esse questionamento, o NYTimes periga seguir o sombrio caminho de diversas outras publicações, como o The Daily, que tinha tecnologia, tinha conteúdo, mas possuía processos desatualizados, do tempo em que a primeira coisa que as pessoas faziam logo de manhã era abrir um jornal numa mesa de café.